domingo, 13 de abril de 2014

Pequenas histórias da cidade...

Quando passei a usar bicicleta como meio de transporte diário, a minha relação com a cidade mudou, a percepção de tudo em minha volta se transformou.

Percebi, por exemplo que quem opta (ou não tem opção) por não usar veículo motorizado no dia a dia não tem espaço na cidade.

Mas um conjunto de outras coisas boas aconteceu.
Por estar mais perto da cidade, não trancado em uma caixa metálica, passei a viver quase diariamente inúmeras histórias, com inúmeras personagens; muitas apaixonantes, outras execráveis, mas todas resultado de uma interação com a cidade que eu não tinha antes.

Então, vou narrar aqui - através de várias pequenas histórias - um pouco do dia a dia se deslocando em uma cidade grande, que foi muito pouco feita para as pessoas.


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Hoje saía do portão de casa (de bicicleta, claro) e logo avistei um carro diferente, barulhento, rebaixado, "todo filmado". Pensei: "vou deixar esse cara passar".

O cara parou na minha frente e perguntou onde era o Largo do Machado.
De onde estávamos era difícil explicar, mas respondi e ele aceitou.
Mas enquanto ele dava a volta retruquei a mim mesmo, fui atrás dele e disse:

"- cara, é meu caminho, se você quiser pode me seguir, mas só para saber, eu vou bem mais rápido que você".
Ele me olhou de cima a baixo, riu discretamente (quis disfarçar em retribuição à minha gentileza) e falou, incrédulo: "- tá, vou tentar te observar e acompanhar".

Esperei ele dar a volta, ele parou nos 2 sinais da minha rua e eu parei esperando ele (eu sempre paro nos semáforos, espero apenas todos os pedestres passarem e depois sigo).
Depois dos 2 semáforos seguimos juntos, eu segurava um pouco para esperar ele no trânsito.
Entramos na Pinheiro Machado, o trânsito totalmente parado, eu "sumi" entre os carros.

Por andar mais devagar para esperá-lo, um motorista de ônibus buzinava alucinadamente atrás de mim, porque eu andava "devagar" e ele queria correr para parar no sinal fechado à frente.

Parei na esquina da Paissandu para aguardá-lo.
Esperei esperei esperei...
Ele apareceu, fiz sinal e ele me seguiu.

Seguimos juntos até a Praça São Salvador, lá, parei ao seu lado e pedi para ele dar a volta enquanto eu cortava caminho pela praça.
De novo parei e esperei ele...

Cheguei no sinal antes na praça José de Alencar parei e esperei ele chegar de noooooovo.
Aí eu disse:
"- cara, você já chegou, ali no próximo sinal você segue à esquerda e já estará no Largo do Machado, eu vou seguir porque não dá para ficar te esperando mais, valeu!"

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Sexta-feira, hora do rush, centro da cidade, estávamos atravessando a faixa de pedestres e o sinal abriu, um dos apoiadores de trânsito da CET (aqueles que ficam de roupa azul e amarela) chamou nossa atenção dizendo para "corrermos porque o sinal tinha aberto".

Eu - sem apertar o passo e com a naturalidade de quem cita uma coisa óbvia - exclamei "- eles esperam, nós estamos pedestres, na faixa, logo - temos prioridade, não é?".

O senhor agente de trânsito me chamou de "arrogante e mal educado, porque ele 'quis ser legal comigo' e eu 'fui grosso com ele' ".
Ao terminarmos a travessia alguns motociclistas que estavam na frente me xingaram e saíram correndo para parar no próximo sinal fechado e começar todo ciclo de novo (algumas pessoas adoram fazer besteira e sair correndo...).

Não resisti e parti pro "confronto", chamando a atenção dele sobre como é que ele - sendo agente de trânsito - não sabia, respeitava e fazia valer uma coisa tão básica das leis de trânsito; que é a prioridade absoluta do pedestre sobre todos os outros veículos.

Ele continuou insistindo que eu estava errado e que tinha ter saído correndo para os carros passarem, porque o sinal abriu e os motoristas tinham direito de passar.

Um dos amigos que estava comigo ainda retrucou: "- Robson, você acha que esse cara sabe disso?". Então eu fiquei mais assustado ainda, porque as pessoas acham que esses caras não são capacitados e mesmo assim acham normal.

A CET só pensa em manter a fluidez do trânsito, doa a quem doer, porque quem está dentro de um veículo motorizado é que é dono da rua.  A vida não importa, só a fluidez, afinal de contas estamos numa cidade grande, não é?

E a gente ainda tem orgulho de dizer que "somos brasileiros, não desistimos nunca!".
Eu não tenho orgulho, tenho vergonha!

Em tempo, para quem não sabe do que estou falando:

CTB - Lei nº 9.503 de 23 de Setembro de 1997

Institui o Código de Trânsito Brasileiro.
Art. 214. Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado:
- que se encontre na faixa a ele destinada;
II - que não haja concluído a travessia mesmo que ocorra sinal verde para o veículo;
III - portadores de deficiência física, crianças, idosos e gestantes:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa.
IV - quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja sinalização a ele destinada;
- que esteja atravessando a via transversal para onde se dirige o veículo:
Infração - grave;
Penalidade - multa.

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Eu me deslocava para o trabalho de bicicleta como sempre; fazia um caminho que passei a não fazer mais, porque passava por uma via que constantemente me gerava estresse.

Laranjeiras, Viaduto Jardel Filho, e ao final dele um radar, obrigando os motoristas a reduzirem a 40Km/h, seguindo pela rua Conde de Baependi.
Cerca de 50 metros após o radar há um semáforo e a rua é apertada, não dá para passar 2 carros e uma bicicleta, eu preciso ocupar a maior parte da faixa por estes 50 metros.

Neste dia um senhor com um carro muito grande buzinava alucinadamente atrás de mim (devia achar que o direito ao espaço público era proporcional ao tamanho do veículo que se usa).
Mas eu não sabia do que se tratava, se queria apenas mostrar a todos seu carro novo ou se era um defeito ou se ele era só mal educado mesmo.

Ao conseguir passar ao meu lado (menos de 10 segundos depois), abriu o vidro e gritou para mim:
"- Ô filh# d$ p%75a, sai da rua e deixa os outros passarem, vai ler o código de trânsito! Bicicleta tem que andar na calçada!"

Ainda tentei retrucar e dar a ele um exemplar do CTB de bolso, mas ele saiu correndo para furar o sinal que acabava de ficar vermelho.

Em tempo, para quem não sabe do que estou falando:
CTB - Lei nº 9.503 de 23 de Setembro de 1997
Institui o Código de Trânsito Brasileiro.
Para efeito deste Código adotam-se as seguintes definições:

BICICLETA - veículo de propulsão humana, dotado de duas rodas, não sendo, para efeito deste Código, similar à motocicleta, motoneta e ciclomotor.


Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.

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Outro dia parei no semáforo da Santa Luzia com Rio Branco, tinha uma moça parada de bike, parei ao lado dela e dei bom dia.

Ela olhou assustada, me viu, relaxou e depois - feliz - me disse "- desculpe, é que a gente está tão acostumada com perigo que já olhamos assustados!".

Eu retruquei: "- Pois é, mas estamos mudando, a gente vai passar a se acostumar com bons dias".

Ambos saímos "de bem com a vida".

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Outro dia levei 3 fechadas feias e intencionais na Primeiro de Março, 2 de taxistas.

- Um deles tinha um adesivo "CONVIVA" do Bradesco (Este é um "movimento" que propõe a boa convivência entre carros e bicicletas...).
- Outro tinha um adesivo "É bom ser do bem".
- E o outro um daqueles "Centro de evangelização ZZZ, transformado as pessoas".

Todos "cidadãos de bem"....

Em tempo: não estou falando mal de "centros de evangelização", mas de pessoas, ok?

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Almoçava com dois amigos e surgiu o assunto de bicicleta para o trabalho.

Um deles disse que não ia porque não tinha nada de "atlético ou esportista como eu"; que não tinha a disposição que eu tinha para ir de bike pro trabalho.

Eu retruquei e lhes disse:
"- Eu acho muito engraçado quando as pessoas pensam que eu ando de bicicleta porque sou "esportista" ou porque "tenho muita disposição".
- Eu venho de bicicleta porque sou muito preguiçoso!"

Eles contestaram me chamando de "piadista". E logo expliquei:

"- É verdade!
Moro a cerca de 700 metros do ponto de ônibus e 1Km do Metrô. Descendo do ônibus ou Metrô ainda teria que andar mais uns 700 metros e chegar muito suado.
Que preguiça que dá!

De carro tenho que ficar preso no trânsito por cerca de 1 a 2 horas, sem poder ler, tirar uma soneca, ou fazer nada, sou escravo do volante. E ainda tenho que ficar rodando para procurar vaga. Acabo encontrando uma a 500 metros do trabalho, para chegar suado e de mal humor.
Que preguiça - e raiva - que dá!

De bicicleta saio da porta de casa já pedalando e paro a bicicleta dentro do escritório. Pedalo de porta a porta e levo menos de 30 minutos. Não dá nem para suar.
Alimenta minha preguiça com conforto!"

Ambos ficaram em silêncio, vestindo todos os suas carapuças.

;-)

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Eu estava numa noite de sexta-feira num bar na Rua das Laranjeiras esperando minha namorada.
O bar costuma ficar muito cheio, a ponto de as pessoas ocuparem toda calçada; pela quantidade de gente e o pouco espaço disponível.
(Em tempo: não estou defendendo a ocupação e uso indiscriminado das calçadas pelos bares, a ponto de as pessoas não poderem passar. O caso aqui é que fica muita gente em pé na calçada, exatamente porque não colocam mesas na calçada para todos. Eu estou defendendo a ideia que foi implementada em São Paulo, ocupando espaço que antes eram utilizados para carros por espaços para as pessoas, pequenas mini praças: prefeito formaliza o uso de mini praças em espaços antes apenas ocupados por carros)

Eu estava com minha bicicleta.

Na frente do bar ficam parados vários carros, no canto da rua.
De repente um dos carros saiu e o espaço ocupado por ele ficou naturalmente livre. No entanto as pessoas viram aquele espaço livre e continuaram se apertando na calçada.


Incrível, ninguém "ousou" ocupar aquele espaço que é reservado para o deus automóvel.
Incrível, naquele espaço cabiam umas 2 mesas e 8 cadeiras, ou umas 10 pessoas ou mais conversando, expandindo o espaço da calçada.
Incrível, aquele espaço estava "reservado" para 1 pessoa ocupar com 1 carro. Ou seja, 1 pessoa que possuía carro tinha mais direito de ocupação daquele espaço público do que todas as outras 10 que estavam ali sem carro!

Eu naturalmente observei aquilo e ocupei o espaço.
Pus minha bicicleta na vaga, coloquei uma caixa de cerveja como se fosse uma mesa e sentei sobre outra.
O mais incrível é que após fazer isso o ambiente mudou! As pessoas começaram a ocupar o espaço e os carros que avistavam a "vaga" de longe, quando chegavam perto viam que o espaço já estava ocupado!

Então, para não deixar cair no esquecimento: o espaço é publico, de todos, não apenas de alguns!

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Numa outra ocasião, no mesmo local, eu estava saindo do bar com meu filho na "garupa". Nesta esquina há uma rampa de acesso à calçada, para cadeirantes, carrinhos e outros veículos com rodas.
Eu estava parado quase na rampa, colocando meu filho na cadeirinha.
Um senhor de carro parou em minha frente e "pediu" para eu sair dali para ele estacionar. O diálogo foi mais ou menos o seguinte:
- Por favor, você pode sair daí para eu estacionar?
- Companheiro, você não pode estacionar aqui, tem uma rampa de acesso a cadeirantes.
- É, só que não tem nenhuma outra vaga!
- Pois é amigo, como eu disse, isso aqui não é vaga, é uma passagem para cadeirantes, mas mesmo se não fosse passagem, é totalmente na esquina, você não poderia parar mesmo.
- P##%rr@, tem gente que não tem a menor consideração com os outros, bem que podia me adiantar, né, babaca?
Ele arrancou com o carro cantando pneu.

É, tem gente que não tem a menor consideração com os outros mesmo...

Até o próximo...

2 comentários:

  1. Olá, Robson!
    Gostei dos seus relatos e me identifiquei bastante com eles. Afinal, são histórias bastante usuais para quem usa a magrela como meio de transporte.
    É realmente desanimador constatar o quão mal-educado é o brasileiro e, principalmente, que até mesmo quem deveria fazer valer as regras do CTB sequer o conhece.
    Ano passado pude pedalar na Itália e tive uma experiência fantástica. É impressionante o respeito ao ciclista por lá! Espero que algum dia essa consciência também chegue às terras tupiniquins. Mais que cumprir friamente as leis de trânsito, o brasileiro anda precisando aprender é a respeitar o próximo, simplesmente.
    Tenha uma ótima semana e bons pedais!
    Eduardo Meireles
    Brasília, DF

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  2. Olá Eduardo,

    Obrigado pelo comentário e pela força.
    Eu tento exercer meu papel de cidadão, e é muito difícil num mundo como o nosso.
    O ser humano é capaz de coisas terríveis e de coisas incríveis!

    Sigamos mudando o nosso mundo então!

    Um grande abraço!

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